words / Marcello Dantas
Ecossistemas Criativos - Fronteiras da arte
(São Paulo - 2023)
Marcello: Criatividade é parte da natureza humana, ela só pode ser desaprendida. Hoje a gente está aqui para conversar com o artista e pensador, Gustavo Prado. Gustavo, seja bem-vindo.
Gustavo: Obrigado Marcello, prazer em estar com você.
Marcello: Gustavo, a arte é uma atividade essencialmente humana?
Gustavo: Até aqui sim né Marcello, como a gente estava conversando. Eu acho que não tem nada mais humano do que pensar problemas vinculados à arte ou olhar pro mundo influenciado por uma sensibilidade artística. Você sabe que eu acabei de viver uma experiência, essa semana, chegando no Rio de Janeiro, com o Theo, meu filho que tem 9 anos e o Theo está tendo uma experiência da língua portuguesa muito nova, ele nasceu nos Estado Unidos e vem sempre ao Brasil e tudo mais, mas a língua portuguesa se tornou uma grande jogo, um grande brinquedo de descoberta e experimentação e a gente estava no mar e ele olhou para mim, assim meio espantado e num estalo disse assim ''ô papai, a espuma é o sangue do mar''. Aí eu parei, não quis dar muita bola, não quis levar muito a sério, mas aquilo para mim foi um acontecimento, porque eu me lembro de ter falado para ele sobre poesia mas não me lembro de ter emprestado para ele qualquer tipo de gravidade da relação de ser artista ou fazer arte, ele sempre conviveu com o estúdio, com os livros, com obras de outros artistas dentro de casa, mas eu não acho que ele estava tendo o esforço de ter uma experiência artística ou de compartilhar comigo algum gesto que ele categorizasse ou classificasse como parte de uma obra ou de um poema, eu acho que ele simplesmente teve um estalo de associação de ideias que tinha a ver com uma experiência artística, mas ele perceber que isso iniciaria uma conversa comigo e que isso geraria em mim um interesse, me deu essa dimensão de como é que a gente não vem de fábrica mas a gente não consegue escapar de uma experiência próxima da arte, desde muito cedo eu acho.
Marcello: Essa é uma pergunta que eu sempre me faço, até onde é natural para o ser humano conviver com arte, qual é a fronteira disso e qual é a fronteira que a gente tem quando a gente eleva a arte para lidar com outras espécies. Quando a gente chega nesse lugar, naquilo que é o nosso território de expressão, gera uma mudança de comportamento ou uma mudança de interação no espaço natural ou espaço urbano com outras espécies e consequentemente você inicia um diálogo que é um diálogo dos mais impossíveis mas no qual a arte pode ser sim uma plataforma de encontro e essa possibilidade de esculpir para que seja ocupado ou que interaja com o comportamento de outras espécies é algo que provoca talvez os limites de até onde a arte pode ir.
Como é que você se relaciona com isso?
Gustavo: Frequentemente eu realizo um trabalho num lugar, num espaço natural e a gente dentro da formação do campo de arte ou dentro do debate artístico principalmente dentro do campo da escultura ou da escultura pública, tem uma conversa perene, inclusive uma das acusações recentes ao Richard Serra, é sobre obras que tem uma qualidade formal mas desconsideram contextos sobre o lugar, que estão mais relacionados a questões políticas, econômicas e históricas. Eu estou construindo essa obra e a gente passou por isso no Canadá, qual é a história desse parque? Foi ocupado por quem? E eu tenho visto ser desconsiderado nessa conversa o aspecto de que esses lugares são habitados por espécies, por animais, então eu vivi uma experiência/
Marcello: História natural vs. história humana
Gustavo: Repertório formal artístico, ligado à percepção cor, luz, textura de materiais vs. campo político, histórico, quando na verdade e você tem chamado atenção para isso, a gente tem um outro elemento que é o mundo natural o mundo ecológico que é a diversidade desse mundo.
Marcello: E o desrespeito desse lugar na realidade nos leva a consequências no mundo histórico, na nossa/
Gustavo: Epidemias, pestes.
Marcello: E todas as coisas que existem quando a gente não reconhece o espaço das outras espécies.
Gustavo: É como se inclusive a gente não tivesse mensagens políticas importantes vindas desse universo. Eu me lembro inclusive sobre uma conversa sobre o livro do Frank Hebert, do Dune, Duna e tem uma coisa ali maravilhosa, ele estudava ecologia e resolveu fazer o livro com base em conhecimento sobre ecologia, o propósito da vida é encontrar maior diversidade porque isso cria possibilidade de sobrevivência e perpetuação e tudo mais, então essa proteção da diversidade, é uma coisa que a gente pode aplicar para além do contexto natural. Recentemente, eu vivi uma alteração de uma escultura que eu realizei aqui no Rio de Janeiro numa montanha, pela presença de 15 falcões e dentro dos trabalhos que eu tenho feito, tenho sempre essa expectativa de alteração pelo público, pela manipulação do trabalho, pelo atravessamento de um espaço, pela negociação do espaço entre várias pessoas, mas essa presença desse animais, eu fiquei completamente assombrado, eu nunca tinha visto e alteraram para sempre a minha maneira de ver o meu trabalho. Eu queria muito ter uma linguagem capaz de acessar eles e perceber como é que eles viram o trabalho.
Marcello: Será que essa é a verdadeira fronteira da arte? ou seja, se ela se expande…
A gente guarda a arte para ser uma coisa, sendo produzida por humanos, para humanos, e a gente está num momento em que a gente tá expandido esse diálogo para dizer que a arte pode ser feita por uma inteligência artificial, não humana e pode ser consumida por não humanos, alargando a avenida na qual a arte existe, então se a arte era um código de uma mensagem entre uma mesma espécie mesmo que com culturas distintas, no início a gente fala de um encontro dentro da mesma cultura, mas a arte se expandiu para ser capaz de falar com múltiplas culturas. A próxima fronteira seria expandir o território e dizer que quem pode consumir, quem pode produzir, podem não ser humanos, isso traz questões maravilhosas, possibilidades incríveis, porque aquilo que você pode conceitualmente conceber e ser realizado através de uma inteligência artificial mesmo que isso exista, seja num metaverso da vida ou num mundo real, seja com uma simulação, seja como uma representação, produz um repertorio novo, produz uma coisa nova e em breve essas mesmas inteligências poderão propor questões sobre a própria linguagem da arte que elas tiverem fazendo. Ela vai ser autofágica, vai se auto alimentar, ser a própria referência daquilo que ela produziu, vai produzir novas experiências e por outro lado tem um outra turma olhando para isso, quando a arte deixa de ser uma fotografia na parede ou ser uma pintura e na realidade começa a ser, um pouco o que seu trabalho faz, de entrar pela natureza, entrar pela cidade, entrar pelos contextos e produzir uma nova reflexão uma nova imagem desse ambiente natural e consequentemente dos personagens que estão ali dentro, ela se dispõe a iniciar o diálogo. Claro que você não tem a resposta, ninguém tem.
Gustavo: É uma busca né, uma coisa que me fascina, assim, uma das coisas que a gente vem conversando nos últimos anos, essa possibilidade de reconhecer um lastro, dentro daquilo que a gente chama de inteligência, outras inteligências originais, das quais a gente traz, mas se você levar isso para os primatas próximos, a gente tem modelos de convivência que funcionam até melhor que os nossos, a gente tem nessa disputa bonobos e chimpanzés uma bifurcação aí simbólica importante para gente. A gente quer sociedades matriarcais regidas pelo afeto e pela segurança ou masculinas patriarcais, agressivas, onde cada pequeno espaço é disputado a ferro e fogo?
Marcello: Depende do momento histórico em que essa pergunta é feita, né?
Gustavo: É, mas será que o trabalho de arte pode usar como modelo um exemplo ou outro, quer dizer, identificando, na nossa sensibilidade, na nossa maneira de ser no mundo uma raiz ou outra e tentar trabalhar para que uma raiz vença a outra. Eu estava esses dias ouvindo uma entrevista da Melanie Challenge que está escrevendo um livro sobre esse assunto né, essa formação animal da nossa inteligência e ela dizia assim, que um dos problemas é que nós somos primatas hierárquicos, o que significa que a questão do status, na posição no bando, no grupo, é importantíssima, isso do ponto de vista dos bonobos não é tão presente quanto nos chimpanzés, ou seja existe a possibilidade de abrir um pouco mão dessa posição hierárquica, dessa busca infinita por status que leva ao consumo, ao conflito por recurso, que leva a tanta coisa difícil por conviver, por dividir espaço.
Marcello: Essa pergunta, é ela. Dividir o espaço, dividir a linguagem, dividir o signo. Buscar esse elemento que de alguma forma nos represente a todos, ou que pelo menos coloque em questão.
Gustavo: Sim, o que há de experiência comum que nos aproxima, a gente acabou de realizar um trabalho que tinha relação com isso, você encontrava um labirinto num lugar da cidade, tinha esse desejo por se ver refletido nessas portas/
Ecossistemas Criativos - Fronteiras da arte
(São Paulo - 2023)
Marcello: Criatividade é parte da natureza humana, ela só pode ser desaprendida. Hoje a gente está aqui para conversar com o artista e pensador, Gustavo Prado. Gustavo, seja bem-vindo.
Gustavo: Obrigado Marcello, prazer em estar com você.
Marcello: Gustavo, a arte é uma atividade essencialmente humana?
Gustavo: Até aqui sim né Marcello, como a gente estava conversando. Eu acho que não tem nada mais humano do que pensar problemas vinculados à arte ou olhar pro mundo influenciado por uma sensibilidade artística. Você sabe que eu acabei de viver uma experiência, essa semana, chegando no Rio de Janeiro, com o Theo, meu filho que tem 9 anos e o Theo está tendo uma experiência da língua portuguesa muito nova, ele nasceu nos Estado Unidos e vem sempre ao Brasil e tudo mais, mas a língua portuguesa se tornou uma grande jogo, um grande brinquedo de descoberta e experimentação e a gente estava no mar e ele olhou para mim, assim meio espantado e num estalo disse assim ''ô papai, a espuma é o sangue do mar''. Aí eu parei, não quis dar muita bola, não quis levar muito a sério, mas aquilo para mim foi um acontecimento, porque eu me lembro de ter falado para ele sobre poesia mas não me lembro de ter emprestado para ele qualquer tipo de gravidade da relação de ser artista ou fazer arte, ele sempre conviveu com o estúdio, com os livros, com obras de outros artistas dentro de casa, mas eu não acho que ele estava tendo o esforço de ter uma experiência artística ou de compartilhar comigo algum gesto que ele categorizasse ou classificasse como parte de uma obra ou de um poema, eu acho que ele simplesmente teve um estalo de associação de ideias que tinha a ver com uma experiência artística, mas ele perceber que isso iniciaria uma conversa comigo e que isso geraria em mim um interesse, me deu essa dimensão de como é que a gente não vem de fábrica mas a gente não consegue escapar de uma experiência próxima da arte, desde muito cedo eu acho.
Marcello: Essa é uma pergunta que eu sempre me faço, até onde é natural para o ser humano conviver com arte, qual é a fronteira disso e qual é a fronteira que a gente tem quando a gente eleva a arte para lidar com outras espécies. Quando a gente chega nesse lugar, naquilo que é o nosso território de expressão, gera uma mudança de comportamento ou uma mudança de interação no espaço natural ou espaço urbano com outras espécies e consequentemente você inicia um diálogo que é um diálogo dos mais impossíveis mas no qual a arte pode ser sim uma plataforma de encontro e essa possibilidade de esculpir para que seja ocupado ou que interaja com o comportamento de outras espécies é algo que provoca talvez os limites de até onde a arte pode ir.
Como é que você se relaciona com isso?
Gustavo: Frequentemente eu realizo um trabalho num lugar, num espaço natural e a gente dentro da formação do campo de arte ou dentro do debate artístico principalmente dentro do campo da escultura ou da escultura pública, tem uma conversa perene, inclusive uma das acusações recentes ao Richard Serra, é sobre obras que tem uma qualidade formal mas desconsideram contextos sobre o lugar, que estão mais relacionados a questões políticas, econômicas e históricas. Eu estou construindo essa obra e a gente passou por isso no Canadá, qual é a história desse parque? Foi ocupado por quem? E eu tenho visto ser desconsiderado nessa conversa o aspecto de que esses lugares são habitados por espécies, por animais, então eu vivi uma experiência/
Marcello: História natural vs. história humana
Gustavo: Repertório formal artístico, ligado à percepção cor, luz, textura de materiais vs. campo político, histórico, quando na verdade e você tem chamado atenção para isso, a gente tem um outro elemento que é o mundo natural o mundo ecológico que é a diversidade desse mundo.
Marcello: E o desrespeito desse lugar na realidade nos leva a consequências no mundo histórico, na nossa/
Gustavo: Epidemias, pestes.
Marcello: E todas as coisas que existem quando a gente não reconhece o espaço das outras espécies.
Gustavo: É como se inclusive a gente não tivesse mensagens políticas importantes vindas desse universo. Eu me lembro inclusive sobre uma conversa sobre o livro do Frank Hebert, do Dune, Duna e tem uma coisa ali maravilhosa, ele estudava ecologia e resolveu fazer o livro com base em conhecimento sobre ecologia, o propósito da vida é encontrar maior diversidade porque isso cria possibilidade de sobrevivência e perpetuação e tudo mais, então essa proteção da diversidade, é uma coisa que a gente pode aplicar para além do contexto natural. Recentemente, eu vivi uma alteração de uma escultura que eu realizei aqui no Rio de Janeiro numa montanha, pela presença de 15 falcões e dentro dos trabalhos que eu tenho feito, tenho sempre essa expectativa de alteração pelo público, pela manipulação do trabalho, pelo atravessamento de um espaço, pela negociação do espaço entre várias pessoas, mas essa presença desse animais, eu fiquei completamente assombrado, eu nunca tinha visto e alteraram para sempre a minha maneira de ver o meu trabalho. Eu queria muito ter uma linguagem capaz de acessar eles e perceber como é que eles viram o trabalho.
Marcello: Será que essa é a verdadeira fronteira da arte? ou seja, se ela se expande…
A gente guarda a arte para ser uma coisa, sendo produzida por humanos, para humanos, e a gente está num momento em que a gente tá expandido esse diálogo para dizer que a arte pode ser feita por uma inteligência artificial, não humana e pode ser consumida por não humanos, alargando a avenida na qual a arte existe, então se a arte era um código de uma mensagem entre uma mesma espécie mesmo que com culturas distintas, no início a gente fala de um encontro dentro da mesma cultura, mas a arte se expandiu para ser capaz de falar com múltiplas culturas. A próxima fronteira seria expandir o território e dizer que quem pode consumir, quem pode produzir, podem não ser humanos, isso traz questões maravilhosas, possibilidades incríveis, porque aquilo que você pode conceitualmente conceber e ser realizado através de uma inteligência artificial mesmo que isso exista, seja num metaverso da vida ou num mundo real, seja com uma simulação, seja como uma representação, produz um repertorio novo, produz uma coisa nova e em breve essas mesmas inteligências poderão propor questões sobre a própria linguagem da arte que elas tiverem fazendo. Ela vai ser autofágica, vai se auto alimentar, ser a própria referência daquilo que ela produziu, vai produzir novas experiências e por outro lado tem um outra turma olhando para isso, quando a arte deixa de ser uma fotografia na parede ou ser uma pintura e na realidade começa a ser, um pouco o que seu trabalho faz, de entrar pela natureza, entrar pela cidade, entrar pelos contextos e produzir uma nova reflexão uma nova imagem desse ambiente natural e consequentemente dos personagens que estão ali dentro, ela se dispõe a iniciar o diálogo. Claro que você não tem a resposta, ninguém tem.
Gustavo: É uma busca né, uma coisa que me fascina, assim, uma das coisas que a gente vem conversando nos últimos anos, essa possibilidade de reconhecer um lastro, dentro daquilo que a gente chama de inteligência, outras inteligências originais, das quais a gente traz, mas se você levar isso para os primatas próximos, a gente tem modelos de convivência que funcionam até melhor que os nossos, a gente tem nessa disputa bonobos e chimpanzés uma bifurcação aí simbólica importante para gente. A gente quer sociedades matriarcais regidas pelo afeto e pela segurança ou masculinas patriarcais, agressivas, onde cada pequeno espaço é disputado a ferro e fogo?
Marcello: Depende do momento histórico em que essa pergunta é feita, né?
Gustavo: É, mas será que o trabalho de arte pode usar como modelo um exemplo ou outro, quer dizer, identificando, na nossa sensibilidade, na nossa maneira de ser no mundo uma raiz ou outra e tentar trabalhar para que uma raiz vença a outra. Eu estava esses dias ouvindo uma entrevista da Melanie Challenge que está escrevendo um livro sobre esse assunto né, essa formação animal da nossa inteligência e ela dizia assim, que um dos problemas é que nós somos primatas hierárquicos, o que significa que a questão do status, na posição no bando, no grupo, é importantíssima, isso do ponto de vista dos bonobos não é tão presente quanto nos chimpanzés, ou seja existe a possibilidade de abrir um pouco mão dessa posição hierárquica, dessa busca infinita por status que leva ao consumo, ao conflito por recurso, que leva a tanta coisa difícil por conviver, por dividir espaço.
Marcello: Essa pergunta, é ela. Dividir o espaço, dividir a linguagem, dividir o signo. Buscar esse elemento que de alguma forma nos represente a todos, ou que pelo menos coloque em questão.
Gustavo: Sim, o que há de experiência comum que nos aproxima, a gente acabou de realizar um trabalho que tinha relação com isso, você encontrava um labirinto num lugar da cidade, tinha esse desejo por se ver refletido nessas portas/
Marcello: Que é uma compulsão humana.
Gustavo: Sim, há uma compulsão, então você é levado por um sentido de individualidade, de se imprimir na imagem de um trabalho e o que você encontrava lá de fato era sua imagem sobreposta a outras imagens, a imagens de um grupo além da experiência de abrir as portas e encontrar o outro. Um gesto simbólico de abrir as portas para o outro, ao invés de se erguer um cerca, erguer um muro, simbolicamente, você está abrindo uma porta. Então eu estou interessado por isso e eu acho que há pontos de informação vindo dessas inteligências orgânicas, não sintéticas, apesar de estar muito curioso sobre as que estão surgindo sinteticamente e sobre as fronteiras que existem entre esses dois lugares.
Marcello: É o único lugar que a gente pode estar nesse momento histórico né, a relação entre as nossas inteligências orgânicas e suas limitações, e todas as inteligências artificiais, sintéticas que estão surgindo que podem significar sim, ou uma mudança de atitude criativa ou de alguma forma a falência da nossa necessidade, da gente se tornar absolutamente obsoleto, desnecessário, caro.
Gustavo: É, eu fico curioso sobre essa ideia de se tornar obsoleto, porque como você falou eu trabalho muito com espelho e eu acho que essas inteligências até aqui servem muito para gente espelhar, até como metáfora um determinado entendimento da nossa inteligência, então eu acho que os modelos de diálogo de interface que a gente tem tido, reforçam o aspectos da inteligência, essa coisa da comparação do computador com o cérebro, que acabam afunilando os nossos entendimentos possíveis do que seja a inteligência, a inteligência é tão complexa, quando você pensa na inteligência imunológica contra um ataque externo, é uma inteligência não linguística, mas é uma inteligência.
Marcello: É codificada como linguagem em DNA.
Gustavo: Sim, mas esse debate do que constitui a inteligência né…
Marcello: O fato da gente não saber ler, não quer dizer que não tenha linguagem, o fato da gente não ser capaz de se comunicar com outro pelos nossos meios não quer dizer que não exista linguagem. Em uma conversa com o Kaká Werá que tivemos nesse mesmo programa, surgiu um pensamento lindo, o sonho pode ser uma linguagem comum entre homens e outros seres.
O ser-humano é talvez uma das figuras mais previsíveis que existe, a gente consegue controlar e a gente consegue de alguma forma emular as emoções das pessoas. A arte nos ensinou a fazer isso, como a música é capaz de produzir emoção, como uma história é capaz de produzir emoção e a gente tem métodos construtivos para isso, isso é código, é algo que pode ser ensinado a uma máquina e essa pergunta, que é a pergunta que fica na minha cabeça o tempo todo, é, qual vai ser a hora em que o papel ativo da figura entretenedora do artista, do artista que de alguma forma está capturando essa atenção se torna programável? Se torna separado da pessoa e pode sim, isso já está acontecendo em hollywood, está acontecendo bastante quando você coloca os roteiros para serem analisados por métricas de como é o comportamento humano e isso pode acontecer nas artes e em todas as outras coisas até o momento que a gente seja capaz de fazer um quantum leap na nossa criatividade, dar um pulo, dar um salto, chegar num outro estágio da nossa criatividade, em que a gente consiga se fazer mais útil do que a gente normalmente é, ou seja, tudo que a gente fez pelo passado, até hoje, no passado pode ser aprendido e pode ser reproduzido, a gente precisa necessariamente chegar em algum novo lugar para que isso possa fazer sentido, enquanto vocação humana.
Gustavo: É engraçado que você ao dizer isso dessa maneira me fez pensar também no caráter tanto da arte quanto por exemplo da filosofia, de resistência de rebeldia, toda vez que a gente tenta controlar, fechar, tornar as coisas mais precisas, no campo da teoria científica, da lógica por exemplo, que foi levar na computação, tenta restringir para precisão da comunicação, o campo da arte se rebela né.
Marcello: O papel da arte é empurrar a fronteira para um novo lugar né, seja onde for.
Gustavo: E manter a coisa em aberto né, manter a possibilidade dos sentidos se transformarem, seriam alterados constantemente pela gente né, então eu tenho a sensação de que na medida que a gente foi ensinando para as máquinas determinadas coisas já representadas a gente vai ter sempre artistas, inclusive com a ajuda de outras máquinas criando aberturas, criando ruído/
Marcello: Disrupção.
Gustavo: Criando dissonância né, como é maravilhoso isso, para isso que serve, até porque a gente tem essa coisa escassa que as máquinas não tem que é tempo né, tempo de vida, tempo de invenção.
Marcello: As máquinas têm todo o tempo que elas quiserem
Gustavo: Elas tem todo tempo, mas então, a gente tem essa urgência de não deixar as coisas se tornarem estáveis porque a nossa vida é feita de instabilidade o tempo todo, o mundo é instável, matéria criativa é instável, então eu acho que quando a gente fala em se tornar um artista obsoleto, eu acho que a máquina nunca assumirá esse protagonismo, acho que ela vai sempre estar nesse lugar de polarização ou de companhia. Depende da nossa expectativa.
Marcello: Depende da nossa expectativa, do que a gente quer com isso, se você quer que a arte apenas atenda a sua expectativa, se você não der a ela, se o artista não produzir a quebra dessa definição a arte pode ser sim algo completamente controlado, previsível, feita sob encomenda.
Gustavo: É, aí tem aquela discussão sobre o campo do entretenimento e a gente tem visto já nessa preocupação com posições criativas, da indústria criativa, pensamento criativo sendo perdido para esses programas, como os roteiristas, muito vinculados ao texto. Mas eu tenho minha dúvida sabe, se a gente está tratando de cultura e de massa que tem de fato fórmulas para construir histórias e maneiras de contar histórias ou se a gente está tratando de literatura né, quer dizer, como é que uma máquina pensa uma terceira margem do rio, como é que uma máquina pensa na morte da cachorrinha e da baleia, do vidas secas, como é que você que não teve corpo, nascimento, desejo, perda, tem capacidade de imaginar como seria ser o outro, o outro distinto de você…
Marcello: Pensa por exemplo no filme ELA - Her.
Gustavo: Que é maravilhoso né.
Marcello: Que é exatamente isso, ou seja, o uso da capacidade criativa para atender exatamente suas expectativas, ou seja, a capacidade de previsibilidade do comportamento da pessoa, que na realidade é o grande campo que a gente está vivendo na sociedade hoje.
Gustavo: Prevê que a gente vá sentir solidão né.
Marcello: Alguém que prevê o nosso próximo movimento, o computador sabe que você quer ir para casa agora, que você quer comer agora, ele sabe que você, ou seja, todos esses movimentos vão sendo previstos, assim como nossos sentimentos.
Gustavo: Eu pensei aqui uma coisa interessante que eu acho que pode criar desdobramento para essa conversa, que é na medida que a gente faz esse esforço de humanizar o que não tinha humanidade, quer dizer, a máquina, o código, o computador, é parte desse movimento da arte, interromper o movimento de desumanizar quem já tinha humanidade, quer dizer, esses movimentos de intolerância, violência.
Marcello: Reprogramar.
Gustavo: Preconceito, são esforços de desumanização onde já há humanidade.
Marcello: Você não acha que seja lá quem escreveu o código vai trazer para dentro do código a sua ideologia, ou seja, a ética de uma sociedade ela vai ser refletida à ética ou a falta de, ou os fundamentos, ou o racismo, ou seja lá o que for, vai ser refletido num código que for escrito pelas pessoas que estão escrevendo esse código.
A ânsia que a gente tem é deixar a máquina escrever um código sem isso.
Gustavo: Ou trazer para os artistas e não só para a turma do Vale do Silício a oportunidade de fazer o que a gente já fez com tantas outras tecnologias e a gente já vem fazendo isso que é ressignificar, que é mostrar como a fotografia pode ser usada, como é que a possibilidade de gravar um som pode ser, quer dizer, desdobrar sentido daquilo e multiplicar o uso daquilo que parecia restrito, preciso, cientificamente aplicável, quer dizer, no dia que a gente puser, de novo, não na mão da turma do Vale do Silício, mas na mão dos artistas, dos filósofos, dos poetas, para escreverem código, ou por exemplo, uma das grandes artes que a gente tem hoje no mundo,que mais atraem público, os video games, video games são criações de simulações.
Marcello: De código.
Gustavo: Você habita mundos lá dentro, porque que eu não tenho a experiência de um grande sertão dentro de um vídeo game? Quer dizer, eu precisaria de um exército de programadores para realizar a complexidade do universo criado pelo Guimarães, mas se eu submeto a velocidade e o custo barato dessas novas tecnologias para recriar um mundo dessa complexidade, aí eu estou re-posicionando a possibilidade de ampliação de mundos, de criação de mundos, de experiência de novos mundos que é própria do campo da arte, ao invés de buscar uma precisão técnica e de aplicação mais quantitativa que eu acho que é um pouco do que a gente tem visto.
Marcello: Verdade, essa é a linha que nos resta, essa linha de fronteira entre a gente ser periférico a um processo de mudança ou protagonista dentro desse processo de mudança, acho que essa é a pergunta.
Gustavo: Se apropriar dele.
Marcello: Se apropriar dele, ou seja, não ser refratário a ele, mas ser permeável e torná-lo permeável a intenções outras que não sejam as intenções que reflitam o que a gente tem de pior mas sim o que a gente tem de melhor.
Obrigado pela sua visita.
Gustavo: Obrigada você Marcello.
Currently, he is artistic director of SFER IK Museion in Tulum, Mexico, and curator of Aqui, a new art space at Cidade Matarazzo, a 30,000-square-meter complex in the heart of São Paulo.
With a career spanning more than 30 years, Mr. Dantas is the co-curator, along with Maya El Khalil, of the latest Desert X AlUla biennial, the open air exhibition recently opened in the Saudi Arabian Desert featuring 16 newly commissioned pieces. He was curator of the 13th Mercosur Biennial that took place in Porto Alegre, Brazil, in 2022 and, since 2014, he has been a member of the curatorial board of the Vancouver Biennale.
Mr. Dantas has curated some of the most popular solo shows of the last decade, including “Ai Weiwei Raiz,” the largest exhibition ever staged by the artist, in São Paulo in 2018, as well as exhibitions with some of the most influential contemporary artists of today, including Anish Kapoor, Laurie Anderson, Antony Gormley, Erwin Wurm, Michelangelo Pistoletto, Jenny Holzer, Rebecca Horn, Bill Viola and others.
Among his most innovative projects as a creative director, “NAVE” was an immersive experience comprising a 5,000-square-meter video projection, one of the main attractions of the Rock in Rio music festival in 2019. He was also the artistic director of “Pelé Station,” featured during the 2006 World Cup in Berlin, the Brazilian Pavilion at Expo 2010 Shanghai and the Brazilian Pavilion at Rio+20 in 2012.
Mr. Dantas has received numerous prizes and awards throughout his illustrious career, including the award for best documentary at the Biennale Internationale du Film sur l’Art at the Centre Georges Pompidou in Paris and FestRio, the International Film and TV Festival, New York. He is also the recipient the prestigious iF Design Award from Businessweek and São Paolo’s Tarsila do Amaral Medal. He sits on the board of several international institutions and serves as a visual arts mentor at the Art Institute of Chicago. In 2018, he was awarded the Order of Cultural Merit by the Ministry of Culture of Brazil.